Cinquenta e um anos após a Revolução de Abril, Portugal continua a enfrentar os efeitos de uma gestão ferroviária marcada por decisões políticas erráticas, desinvestimento estrutural e ausência de visão estratégica, onde a ferrovia, infraestrutura central para Países industrializados e eixo privilegiado de transporte sustentável na Europa, tornou-se no nosso País uma vítima da ideologia e da negligência.
O abandono sistemático da rede ferroviária nacional, iniciado no pós-25 de Abril, pode ser parcialmente explicado pela carga simbólica que o regime democrático atribuiu à herança do Estado Novo, onde a manutenção das linhas férreas, segundo alguns setores da esquerda, seria sinónimo de continuidade com o passado autoritário e, associado a essa leitura ideológica, somaram-se os interesses do transporte rodoviário, um lobby poderoso e influente, que encontrou terreno fértil para crescer à medida que a ferrovia definhava.
Este desmantelamento foi acompanhado de uma inversão de prioridades no planeamento do território, em que entre a década de 1970 e o início dos anos 80, Portugal perdeu cerca de 10% dos seus efetivos ferroviários e em 1980, a taxa de cobertura do setor caiu para o mínimo histórico de 38,8%, onde o IVº Plano de Fomento, que previa investimentos robustos, nunca foi concretizado, associado às crises económicas, as intervenções externas e os sucessivos planos de ajustamento orçamental deixaram o País num ciclo vicioso de desinvestimento.
Um dos aspectos técnicos mais críticos deste processo prende-se com a opção pela manutenção da bitola ibérica (1668 mm), em detrimento da bitola europeia (1435 mm), decisão esta, nunca verdadeiramente enfrentada pelos decisores políticos, isola Portugal da rede ferroviária europeia, criando um obstáculo logístico às exportações e impondo custos adicionais às empresas nacionais, enquanto Espanha, desde 2018, canaliza mais de 1% do seu PIB para a modernização da ferrovia com apoio comunitário, Portugal continua a marcar passo, sem um plano nacional coerente de transição para a bitola europeia.
A inação portuguesa é tanto mais grave quanto a União Europeia se mostra disponível para financiar este tipo de investimentos a fundo perdido, em que a aposta na ferrovia é não apenas uma questão de mobilidade sustentável, no contexto do combate às alterações climáticas, mas também uma estratégia de desenvolvimento económico, onde a reativação dos ramais encerrados pode gerar empregos, dinamizar a indústria pesada e contribuir para o alívio das pressões habitacionais nas grandes áreas metropolitanas.
A pergunta, por isso, impõe-se com urgência: que modelo ferroviário quer Portugal? Pretende continuar a sacrificar a coesão territorial em nome de uma visão centralista e rodoviária? Ou escolherá finalmente alinhar-se com as boas práticas europeias, investindo num transporte mais limpo, eficiente e competitivo?
Reativar linhas, conectar zonas urbanas e industriais, integrar portos e aeroportos, adotar a bitola europeia e apostar na alta velocidade não são decisões técnicas isoladas, são opções políticas com impacto direto na sustentabilidade do país, na competitividade da economia e na qualidade de vida dos cidadãos.
Mais do que retórica, é tempo de agir. A ferrovia não pode continuar a ser uma relíquia do passado, deve ser o trilho do nosso futuro.
por Mário Cavaco (Oficial Superior da Força Aérea Portuguesa na Reforma e ex-Retornado – Comissão Política da Distrital de Beja)